sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Aventura Ferroviária III


TUTI BÃO PRO CÊIS

Tive um amigo a quem rendo este singelo capítulo. Uma pessoa de aventuras, de noites mal dormidas, de corpo maltratado pelo trabalho árduo e coração com dupla via de safenas, aliás, um mal de família. O órgão bomba é a herança de genes alelos defeituosa, mas também é conseqüência daqueles que muito amam.

Nas vezes que eu passeava em Goiandira, ficávamos eu e o Heleno conversando por até cinco horas seguidas. Discutíamos de tudo. Aprendia muito e ensinava-o um pouco. Fica difícil ensinar alguma coisa para alguém tão vivido. Eu adorava fazê-lo rir, mas o fazia com moderação porque ele ria e começava a tossir sem parar, aí então eu ficava preocupado.

Com as narrativas dele nasceu uma vontade de relatar num romance em torno da Rede Ferroviária. Pena que minha principal fonte tenha secado. Ele contou-me maravilhas de como foi construída Brasília. De como os materiais chegavam pela via Férrea até a Estação de Calambau, a mais próxima de Brasília. Os caminhões que ocupavam quase toda a estrada de terra, depois de se abastecerem nos vagões, eram chamados de Rodo. Naquele tempo os desvios de materiais eram enormes. Era a nascitura Brasília corrupta. Heleno controlava o que saia dos vagões e, no canteiro de obras da nova capital, deveria ter outro Heleno pra receber o que não tinha. Heleno obteve inúmeras promoções dentro da Rede, chegando, inclusive, a Supervisor.

Era muito brincalhão e defensor perpétuo dos netos – fazia as vontades dos mesmos e fazia com força – motivo de infindas discussões com a avó, a minha tia Carmelinda, na verdade adotada, pois é tia de minha esposa.

Ele, quando militava na política, era o amigão de Wal, uma nossa amiga em comum, ex-secretária municipal. Apoiava todas as suas idéias e ainda às incendiavam. Certa vez, descontente com ambos os candidatos à Prefeitura, fez campanha para o voto nulo. Pra ele era fácil fazer oposição, pois tinha um carro de som. Normalmente tal carro era utilizado, depois de aposentado, como propagandista. Saía pela cidade anunciando e a cada pessoa conhecida fazia uma brincadeira. Nunca deixou de trabalhar e também de se divertir.

Costumava gritar de dentro da cabine da velha camionete em movimento, aos transeuntes, como troça: “- Tuti bão pro cê!” A pessoa inocente entendia “tudo de bão”...

Ganhou, certa vez, um quadro que fora pintado por sua nora Maeda e, aproveitando do desconhecimento de Wal, disse à mesma que era um quadro dele e que tinha muitos outros pintados, já até desbotados, como se pintura desbotasse... Wal entusiasmou e disse que iria arrumar um local para que ele expusesse seus trabalhos de pintura. Ele ia entrar numa fria, pois Wal estava lutando nisso com afinco. Até a mensagem da sua Missa de Sétimo Dia, Wal ainda cria que fosse um grande pintor. O que não era de se duvidar, pois ele era um verdadeiro artista. Ator de mão cheia e músico de incontáveis instrumentos. Seu xodó era a sanfona, mas devido às proibições médicas quanto ao esforço, tivera que abandonar tal prazer, mas consta ter tocado uma semana antes do óbito na Festa de São Sebastião. Foi seu último show.

Na viagem para seu velório meu filho Douglas disse que iria reclamar sua herança, pois o Tio Heleno havia lhe prometido suas moedas antigas. Realmente ele tinha uma porção de moedas, mas daí dar para o Douglas só mesmo uma brincadeira. O Douglas sabia da brincadeira, pois também, muito menino, proseava bastante com o Tio Heleno. Tio Heleno o chamava de “Inventor” e era um apelido que vinha a calhar, pois Douglas sempre foi um tanto cientista. O presente que ele mais adorou ter ganhado na vida era uma coleção “Pequeno Cientista” onde auto-explicava como as coisas funcionam.

O Paulo André, primogênito neto do Heleno, foi deixado pelo mesmo, certa feita, às margens de uma poça d’água pluvial com uma vara de pescar, dizendo que havia muitos peixes ali. O coitado do neto passou a tarde molhando a minhoca e nada. Não sei se teve troco.

Um dos seus filhos chama-se Onele. Interessante que é o nome do avô e que, lido ao contrário, forma-se o nome de Eleno.

Minha cunhada Euzenita, sobrinha do Heleno, quando criança muito pobre, estava com a boca em péssimas condições e teve todo o tratamento custeado por Heleno. Quanta gratidão!
Coube então à Nita, na Missa de Sétimo Dia, ler o texto abaixo, feito por mim ao meu hoje grande mentor espiritual, Heleno Catuta:

DECLARAÇÃO PÓSTUMA

Uma das coisas doces que pude usufruir em minha vida foi a amizade com o “Primo”, o Heleno Catuta. Um ferroviário, um homem de ferro... Tal declaração vem ao encontro do falecimento precoce de um Grande Homem! Não está mais em nosso meio como desejávamos. Certamente o Céu precisou de um General e meu amigo foi chamado para incorporar às Milícias Celestes.

Um Anjo? Um Santo? Não. Um homem bem próximo deste objetivo divino. Agora, se a pergunta for dirigida a um de seus netos, a resposta será, em uníssono, um cântico de louvor ao avô.

Dedicação constante até no instante final, a todos e a tudo o que lhe rodeava, inclusive aos animais, todos de estimação – o grande touro, o cambaleante bezerro, as vacas, o cão fiel e o cavalo disposto.

Fica difícil imaginar a pequena cidade sem o Grande Homem. Só Deus mesmo pra realizar tal façanha. A sua voz ecoava pela cidade anunciando e propagando alegrias. Aqui e ali, uma brincadeira e um sorriso amigo. Conhecia cada habitante e suas peculiaridades. Na frente da casa montava sentinela e, ali, calçado da esperança e conforto, incentivava o transeunte, o caminheiro errante... A todos dava seu cumprimento e o “Deus te acompanhe”.

Sua locomoção motorizada era conhecida e estava sempre com a cabine e carroceria de portas abertas a um carona. Era um feliz brincalhão... A quem passasse por ele sempre vinha o sorriso e a gargalhada garantida. Assim como sorria também chorava. Era um homem de muita fé. Emotivo e, com os olhos voltados a Nossa Senhora, tinha sentimentos espontâneos! Assim como sorria sempre, sempre chorava. Pranto num canto e soluços inebriantes.

Mão aberta e jeito econômico – Formador de patrimônio e incansável aposentado. Via na política a solução social e uma faca para o peito.

Morou no mato. Louco e emotivo cantou e tocou, abriu o fole, teclou... Cantava e encantava! Tocou! Não só instrumentos musicais, mas, o coração de todos que o amava e por ele eram, facilmente, amados!

Tio Heleno, há um vagão na composição que trilha em nossos corações, cheio de histórias, de doces lembranças, da palavra sempre amiga e da certeza que podíamos contar com seu senso de justiça a qualquer momento e em qualquer circunstância!

Agora, um vazio ecoa pelas ruas da cidade... Mas, os nossos corações estarão sempre cheios de saudades e da certeza do reencontro...

O seio da terra, berço eterno de seus filhos, tragou seu corpo, uma semente fecunda com florada nos céus e terra.

Saudades daqueles que anseiam o reencontro. Prepara nossa entrada.


1 comentários:

SOU GOIANDIRENSE disse...

Amigo Aristeu, endosso suas palavras, e o parabenizo, por esse depoimento essa biografia que relata as virtudes e qualidade de nosso Imortal amigo e companheiro " Heleno Catuta ".

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