quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A volta dos que não foram.


CONTO - O RESGATE DO FUNDO DO POÇO

Ainda me lembro do Airton, quando estudávamos na 5ª Série do “Raul Soares”. O pai dele tinha uma engraxataria defrente a praça e servia de “fachada” para a sede do “jogo do bicho”. Era um garoto mirrado de olhos sempre vermelhos e as garotas viviam cercando-no.

Parece que toda a escola acobertava esse aluno de notas baixas, mas sempre alegre; dizia-se “ligado”. Era proibido fumar, mas uma fumaça excito-contagiante os envolviam.
Para fazer parte parte da “turma” não foi difícil: comecei a facilitar as “colas”. Era eu muito aplicado.

Um dia experimentei, baseado não sei em quê, um daqueles cigarros brilhantes. Muito gostoso!... Segura!... Demais!...

Os pais do Airton não tinham tempo pra ele e para os meus quem não tinha tempo era eu. Um dia estudava no Adnan, depois da escola; outro no Uassil; outro no Antonio; outro no Manelogando...

No princípio bastavam as colas, mas a sapiência começou a faltar e para conseguir o “cigarro-do-capeta” tinha que fazer algum “bagulho”. Comecei a trabalhar duro. As forças não eram suficientes para o custeio do vício e comecei a seduzir os amigos. Muitos viraram usuários e eu me transformei em mula, cavalo, avião, idiota...

Quando minha mãe quis saber o motivo das minhas constantes irritações mandei-a para o inferno e disse que sabia o que estava fazendo.
Mudei para as ruas. Abandonei a escola antes da reprovação. Comecei então a trabalhar na noite como garção, balconista e alcoviteiro. A bebida disponível supria a falta de um papelote.

Um dia, depois de muitos anos, jogado na sargeta, muito longe do local da minha infância, sem saber o que realmente se passara, fui abordado por alguém que se apresentava como Servo do Senhor. Convidava-me para ir a um local chamado “Desafio Jovem de Brasília”. Falou-me de comida, roupas limpas, banho...

A palavra comida me aguçou. Entrei no carro e o mesmo saiu em direção a Planaltina.. Adormeci ou desmaiei, não sei.

Quando acordei estava numa enfermaria tomando soro e amarrado. Gritei, debati, xinguei e alguém muito doce desatou aqueles nós dos lençóis. Vim a saber que quem me levara ao local foi um tal de Pastor Vilarindo e que o “bom samaritano” havia pago a internação de seis meses. Seis meses? Nem pensar.
Acontece que a doce voluntária me cativara, me adotara e lá permaneci. Renasci das cinzas! Cultivei a terra! Estudei a “Palavra”.

É verdade que faço uso de medicação controlada, mas não são drogas como aquelas às quais tornei-me dependente. Consegui emprego no local como monitor. Vez por outra invadimos os semáforos para arrecadar doações. Em alguns delírios, ainda não consegui me livrar por completo deles, alguns pensamentos me ocorrem: “Numa picada o Manelogando se foi - overdose... Airton promiscuiu-se por demais e bem cedo a AIDS o levou... Adnan foi preso num assalto... Antônio nunca mais saiu de um manicômio... O Uassil... e o Uassil?”

Fui polpado não sei porquê, mas deve ser por causa da doce companheira do Desafio Jovem.

Além desse campo de recuperação evangélico existem outros da Igreja Católica, Associação de Pais de Dependentes Químicos e o Grupo dos Neuróticos Anônimos. Já dei testemunhos neles.

Outro dia fui numa escola do Plano contar a minha história para as crianças da 4ª Série. Era atendimento a um convite do Programa Para Erradicação das Drogas e Combate à Violência – PROERD – da Polícia Militar – e pude ver um garoto mirrado, olhos vermelhos, cercado de garotas, azarando minha “aula”.

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