sábado, 12 de junho de 2010

Aventura Ferroviária X


POR LINHAS TORTAS DE FERRO

Quando se chega a Goiandira, oriundo de Catalão, do lado direito, um pouco antes da Delegacia, que fica do outro lado, há uma casa que abriga o ex-ferroviário Benedito José Filho, chamado de Benedito Doido e sua família. A calçada arborizada, com bancos improvisados, permite o bate-papo na rua, por horas a fio, ainda mais se aquecido com cafezinho. Cumprimentos e sorrisos são esbanjados aos transeuntes, normalmente vizinhos de longa data.
Benedito nasceu na roça, junto com a Segunda Grande Guerra, em 1939, em terras mineiras, mais precisamente de Patos de Minas. Ainda menino, aos dez anos, juntamente com a família, atravessou o Rio Paranaíba e foram cultivar terras à beira do Rio São Marcos, na Fazenda dos Salvianos, nas terras goianas de Catalão. O contato com o rio, seu companheiro de aventuras infantis, trouxe-lhe muito prazer e alívio do cansaço de pequeno lavrador.
Sua caneta foi a enxada e as linhas de seu caderno eram sulcos no chão, por onde brotaria a sua lição feita com o suor do rosto para a conquista do pão.
Ainda mudou-se aos dezoito anos para a zona rural de Três Ranchos que, à época, realmente tinha três ranchos e não quinhentas mansões.
Plantavam milho, feijão, algodão e mamona. A mamona era pra fazer azeite que movimentava máquinas e caminhões, ou seja, nosso atual biodiesel.
O pai de Benedito, também de mesmo nome obviamente, foi contratado por uma firma terceirizada para ser foguista da Maria-Fumaça, por um pequeno trecho. Passou de fornecedor de lenha para usuário. Era um homem matuto, porém muito observador. Aprendeu a pilotar a máquina apenas observando. Um dia precisou deste conhecimento, pois o maquinista bêbado prostrou-se. O velho Benedito, valendo-se por dois, colocava a lenha e dirigia a composição. Como se diz na linguagem do futebol – ele batia o escanteio e corria pra cabecear a bola. Com esta atitude fora coroado como maquinista – recebera o quepe, um diploma do ofício e um convite para ingressar-se na rede, mas não quis. Na realidade ouviu conselhos de sua mãezinha. Ela tinha muito medo pela sorte do filho. Naqueles tempos os trens eram assaltados e os condutores mortos a pauladas. Certa chacina ocorrida dentro de um vagão de passageiros, em Catalão, não saía da cabeça daquela senhora.
Na cabeça do neto, Benedito Doido, ainda ecoa as palavras da avó ao seu pai – “Não vá, meu filho, pelo leite que de mim mamou”.
O velho Benedito, quando o filho xará contava então trinta e dois anos, valendo-se do seu longo prestígio com Zé Tavares, Mestre de Linha, pediu para que arrumasse uma colocação ao filho. Assim aconteceu a entrada à Estrada de Ferro de Benedito Doido. O velho Benedito, por ter ouvido o conselho da mãe, sofreu atraso de vida.
Benedito Doido trabalhou pouco mais de vinte e seis anos como tatu. Tatu é como eram chamados por fazer buracos para encaixe dos dormentes. A picareta era a dolorosa aliada.
Teve uma aposentadoria especial e a provocou quando a privatização estava certa, o que ocorreu após um ano após de inatividade.
Antes de ir para o trecho, local ermo de trabalho ao longo da estrada de ferro, deveria fazer a marmita, o caldeirão como ele mesmo diz. As coisas evoluíram e, depois de certo tempo, bastavam levar os mantimentos que um cozinheiro faria a comida no local. Uma promoção de bóia-fria pra bóia fresca e quente.
Normalmente algum vagão velho de passageiros, estacionado em um desvio antigo, servia de alojamento. Era muita alegria fomentada pela cachaça abundante. O trabalho era chamado de quinzena, mas na verdade trabalhavam uma semana de seis dias e outra de quatro dias, ou seja, trabalhavam de segunda a sábado, folgavam domingo, retornavam na segunda e, na quinta, encerravam a semana. Serviço pesado na reformas de linhas. Um fraco não se adaptava e só os fortes permaneciam. Fracos não eram aqueles que não suportavam a dureza do trabalho, mas as brincadeiras provocantes que não cessavam hora nenhuma.
Doutra feita, isolados na recuperação de linhas, foi enviado um mensageiro para informar que toda a turma fosse renovar exames médicos para permanência no trabalho. Tal mensageiro, irresponsável de marca maior, ficou bêbado pelo caminho e não deu o recado. Com isto todos foram demitidos.
Benedito Doido então, durante quarenta dias, foi trabalhar na “Colier”, certa empreiteira da Rede. Nesta oportunidade receberam aviso para retornar às funções antigas. Alguém vira que não foram culpados. Ainda voltaram ao batente sem a necessidade de exames médicos, pois eram homens duros e saudáveis, provados a ferro e fogo numa agenda de desenvolvimento sem parada.
Na volta ao trabalho, Benedito teve como feitor um João Calixto, exatamente neste momento quando recebeu o apelido de Benedito Doido.
O Feitor mandou-o lavrar uns dormentes para colocar na linha em substituição aos estragados. Benedito então, mentindo, e pra tirar sarro do feitor junto aos companheiros, disse que não sabia fazer isso. Pediu pra o feitor ensiná-lo. O gaiato, dando uma de Joãozinho-sem-braço, ficou prestando atenção na lição que sabia de cor e salteado. O feitor fez calmamente todo o serviço, inclusive explicando dos perigos ao se trabalhar sem segurança. Depois da instrução dada pediu a Benedito para socar do outro lado. Benedito exagerou na força, pra disfarçar o conhecimento, e uma pedra voou na canela do feitor que saiu gritando: - “Você tá doido? Você só pode ser doido. Você é doido.”
A turma não perdeu tempo em apelidá-lo. Mesmo não importando o apelido pegou. Hoje é um doido de três salários mínimos e muito grato pela sorte que Deus lhe deu.

1 comentários:

ANTONIO MARCOS DE PAULO disse...

Dito doido, mais um belo personagem da vida real.
Aristeu, continue a resgatar essas belas passagens. Se somos hoje um grande país, devemos isso a todos esses heróis que se escondem na face dessas pessoas especialmente comuns.
Parabéns, pescador de homens e de suas fantásticas histórias.

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